Chang’e-4’ faz história ao pousar no lado oculto da Lua

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Rita Feodrippe*

Matt Damon é um ator espacial. Em Perdido em Marte, acompanhamos seus jogos mentais e impasses científicos diários na busca pela sobrevivência em um planeta inóspito. No filme Elysium, seu personagem luta contra um sistema político e econômico de dominação, que se apropriou da Terra como gueto de exploração para manter a vida das elites no espaço sideral. A proposta do habitat artificial espacial criado pelos seres humanos em Elysium não difere muito daquele apresentado, previamente, pela animação da WALL-E, da Disney. Inabitável, o planeta Terra tornou-se um acúmulo de lixo e ruínas, e a viagem para o desconhecido mundo das estrelas configura-se, mais que simples resultado da curiosidade humana, como uma necessidade para a sobrevivência da espécie.

As “novas ameaças” que estão moldando o século XXI forçam a recorrência a um imaginário popular de fuga do planeta, que a ficção consegue materializar nas telas de cinema. Desastres ambientais, migrações forçadas e guerras nucleares são exemplos de resultados cujas circunstâncias já hoje são observadas. Distúrbios climáticos gerados pelo aquecimento global e o deslocamento de populações – por motivos de pobreza, miséria, desigualdade social, insegurança alimentar, violência urbana e guerra, por exemplo, tornaram-se comuns em diversas partes do globo. Embora se espere (e recomende) que a humanidade trabalhe no seu habitat original, resolvendo os problemas que criou ao longo da história de forma a garantir sua existência por meio de políticas públicas reais, o apelo à ficção científica, à fuga e ao recomeço é tentador.

Nesse contexto que mistura distopia e realidade, celebra-se o recente sucesso da República Popular da China (RPC). A missão Chang’e-4 cumpriu o objetivo de pousar, pela primeira vez, um módulo robótico na face oculta da Lua. Em 1959, a sonda Luna 3, lançada pela então União Soviética, já havia observado o lado lunar mais afastado. Uma década depois (1968), três astronautas estadunidenses da missão Apollo 8 flutuaram ao redor do satélite e viram, com seus próprios olhos, o que a sonda soviética havia apenas fotografado. Porém, os chineses foram os primeiros a “pisar” em solo lunar oculto, e a missão inovou ao permitir a coleta de amostras que poderão ser estudadas e testadas em laboratórios terrestres.

O conjunto chinês lançado em 08 de dezembro de 2018, por um foguete Long March-3B, é composto por dois artefatos: uma sonda de pouso e um veículo automatizado (rover), chamado de Yutu-2. O recebimento, na Terra, das imagens e vídeos feitos por ambos, só foi possível devido à assistência do satélite retransmissor Queqiao, lançado em 21 maio de 2018, que estabeleceu um link de comunicação entre a Terra e o lado escuro da Lua. Marcando a 294ª missão da série de foguetes Long March, no centro de lançamento de satélites de Xichang (provícia de Sichuan, no Sudoeste da China), Chang’e-4 chegou ao seu destino final em 03 de janeiro de 2019.

A sonda levou consigo, também, um “jardim lunar” (minibiosfera), que permitiu observar a germinação das primeiras plantas na superfície da Lua – sementes de algodão. O experimento biológico pode consolidar conhecimentos que, um dia, ajudarão a tornar a Lua habitável para seres humanos. O evento marca, assim, uma conquista na jornada rumo ao estabelecimento de uma base lunar, impulsionando o processo de “colonização” que já se propõe desde a corrida espacial iniciada na Guerra Fria (1947-1991). Os chineses expressaram diversas vezes o desejo de estabelecer uma base de pesquisa no satélite, com estruturas para ocupação humana – o que vai ao encontro da missão tripulada que planeja enviar um nacional chinês para a Lua até 2036. Ruma-se, também, à expansão da exploração do espaço profundo, pois as missões lunares constroem as fundações para as futuras missões em Marte, Júpiter e, possivelmente, para além do Sistema Solar. Nesse sentido, em 2020, a RPC planeja enviar uma sonda que orbite, pouse e desloque-se por Marte no ano seguinte.

O acontecimento das últimas semanas deve ser compreendido no escopo maior do programa lunar da RPC, que teve início em 2004 e inclui orbitar e pousar na Lua, além de trazer as amostras do solo lunar de volta para a Terra. O programa tem atingido cinco sucessos consecutivos, com Chang’e-1 – lançado em 2007, e que fez da China o quinto país do mundo a desenvolver e lançar uma sonda lunar por conta própria; Chang’e-2 – lançada em 2010, e que criou um mapa lunar completo, mostrando os detalhes do sítio de pouso proposto para a Chang’e-3; a própria Chang’e-3 – lançada em 2013, e que foi a primeira nave espacial chinesa a pousar em e explorar um objeto extraterrestre, além de ser o objeto de fabricação humana com o maior tempo de estadia na Lua. A esses três eventos, somam-se um teste de nave realizado em 2014, e que avaliou as tecnologias a serem usadas na Chang’e-5 – uma sonda cujo lançamento está planejado para até o fim de 2019, com o objetivo de trazer à Terra as amostras coletadas na Lua; e, agora, a Chang’e-4. O sucesso completo da missão inaugura a quarta fase do programa de exploração lunar da China, assim como o de exploração do espaço profundo, e permite à China continuar com seu planejamento de outras quatro missões lunares, a serem realizados através da agência espacial chinesa.

A missão Chang’e-4 representa um grande avanço para o programa espacial chinês, transformando o país em uma potência de exploração espacial. Seu sucesso significa a capacidade do povo chinês de alcançar novos níveis de desenvolvimento de ciência e tecnologia na “nova era do socialismo com característica chinesas”, sob a forte liderança do Partido Comunista Chinês e do presidente Xi Jinping. Demonstra o ápice da integração civil-militar cultivada desde os tempos de Mao, que passou por diferentes fases, estando sempre presente e contribuindo para o salto tecnológico-industrial alcançado pelo país. Os investimentos em defesa, especialmente nos setores espacial e nuclear, seguiram estratégias próprias da história da RPC, cujos líderes aprenderam com a corrida armamentista que consumiu a União Soviética contra os Estados Unidos e seus aliados, durante a segunda metade do século XX. Apostando no discurso da cooperação e no caminho do desenvolvimento (pacífico) como impulso para o programa espacial, a China ressalta seus esforços nesse sentido.

Assim, estimula-se a colaboração global no programa espacial nacional. A última missão lunar simbolizou cooperação significativa com múltiplos países e organizações internacionais, materializando a esperança da China em conjugar o conhecimento humano na exploração espacial. Chang’e-4 está equipada com instrumentos e cargas desenvolvidos por cientistas holandeses, suecos, alemães e sauditas. Além disso, conta com uma colaboração tecnológica sino-russa no desenvolvimento de alguns equipamentos, e a estação de terra construída pelos chineses na Argentina é importante para o monitoramento e o controle da missão. Outros atores com participação relevante na empreitada são a Agência Espacial Europeia, que oferece suporte, e os cientistas da Órbita de Reconhecimento Lunar da NASA (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço do governo dos Estados Unidos), que estudaram o pouso de Chang’e-4 a fim de aprimorar o aprendizado de suas próprias iniciativas. Wu Weiren, chefe de concepção do programa chinês, afirma que a cooperação internacional é o futuro da exploração lunar, e que a participação de diversos países permite a divisão de custos, riscos e sucessos entre eles, além do compartilhamento de aprendizados. No discurso oficial da RPC, contribui-se, assim, para a construção de uma “comunidade com futuro compartilhado para a humanidade”, através de ações práticas. Essa cooperação reforça a retórica da “utilização pacífica do espaço”, um assunto em voga nos fóruns internacionais, especialmente nas Nações Unidas (recorde-se a recente criação da “Força Espacial” pelo governo de Donald Trump). Todas essas escolhas aprimoram o poder econômico, científico e tecnológico da China, além de aumentar sua coesão interna e sua influência internacional.

Para o Brasil, a cooperação espacial com a China é fundamental para a continuidade do programa CBERS (China-Brazil Earth-Resources Satellite), que visa ao desenvolvimento de uma série de satélites de observação da Terra. A parceria entre os países no setor técnico-científico espacial ocorre através do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e planeja seu próximo lançamento no segundo semestre de 2019 (CBERS-4A). O sucesso do programa lunar chinês significa capacitações de novas tecnologias que podem ser utilizadas no diálogo com os cientistas brasileiros, e a aproximação entre as instituições responsáveis pela troca de conhecimentos nesse setor é potencialmente benéfica para a ciência brasileira.

Na imaginação e na cultura popular, a ideia do “lado oculto da Lua” sempre foi associada a um mistério, dando origens a diversas histórias e fantasias. Assim, a importância da empreitada chinesa não é só tecnológica, mas também simbólica, permitindo a reconstrução de mitos – o que associamos ao passado – e ficções – em que brincamos com o futuro. No folclore chinês, Chang’e é uma princesa que consome uma pílula mágica e, com seu coelho de estimação, o Yutu, flutua até a Lua, tornando-se uma deusa. Quando o ser humano é capaz de usar a tecnologia para alcançar os espaços mais escuros, distantes e desconhecidos do universo, ele se torna também, um deus – de seu próprio destino, futuro e escolhas. 

Leituras adicionais recomendadas:

1 – China’s Space Activities in 2016 (White Paper)
2 – Space Science and Technology in China: A Roadmap to 2050
3 – Chinese Space Program: A Photographic History



* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos (PPGEM) pela Escola de Guerra Naval (EGN), com bolsa de pesquisa pela Fundação Ezute. Formou-se bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


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