A armadilha da renda média na China

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Lucía Fernández *

Notícias e análises sobre novas disposições ou mudanças na estrutura de comando ou bem sobre questões comerciais dominaram as discussões sobre a China de forma recente. Neste artigo, tentaremos explicar um fenômeno conhecido e experimentado por vários países latino-americanos e sua possível relação com a trajetória do gigante asiático: a questão da armadilha da renda média ou middle income trap. A China no atual estágio de desenvolvimento corre o risco de passar por esta situação? Quais as razões ou condições que a podem isentar?

O conceito de “armadilha de renda média” foi popularizado em 2007 pelos autores Indermit Gill e Homi Kharas ao analisar certos elementos do processo o desenvolvimento moderno. De acordo com os autores, este fenômeno pode ser descrito a partir de de três eixos principais: A desaceleração no grau diversificação da estrutura econômica à medida que os países se especializaram; a relevância decrescente do investimento e o aumento progressivo da inovação; e por último a mudança nos sistemas de ensino no intuito de aperfeiçoar e adaptar as capacidades dos trabalhadores às novas tecnologias e processos. No entanto, a experiência histórica sinaliza vários casos de países que, pelo contrário, chegado certo momento da trajetória de desenvolvimento, atravessaram uma progressiva estagnação que dificultou a transição para um tipo de crescimento impulsionado pela inovação e o aumento da produtividade.

Posteriormente, devido a várias ambiguidades na sua utilização, os autores supracitados decidiram rever o conceito (2015), com base principalmente no desenvolvimento da América Latina, Ásia Oriental e Europa Central nas últimas décadas. O ponto mais interessante dessa atualização é que eles incorporam a demografia como uma variável relevante.

Os estágios de desenvolvimento passariam de um momento inicial caraterizado por uma economia de base agrícola com presença de investimentos externos, para uma baseada na produção de manufaturas simples sob liderança de empresas estrangeiras, seguido pela progressiva incorporação de indústrias de maior nível tecnológico, mas ainda sob tutela estrangeira (Tailândia, Malásia). Logo, se iniciaria uma etapa caracterizada pela produção de produtos de alta qualidade (Coréia) para finalmente alcançar a liderança tecnológica no design, inovação e capacidade produtiva (Ohno, 2009). Neste sentido, poderia se dizer que, nos últimos anos, a China transitou do caso tailandês para o coreano.

Nos exemplos de sucesso, os analistas observam com entusiasmo a diversificação das exportações, as estratégias educacionais, os fortes mecanismos de proteção social e a troca comercial fluida e sólida na região. Eles também concordam que as políticas industriais nestes países assim como incentivo estatal na China foram fatores cruciais. Por sua vez, o caso chinês se caracteriza pela alta divisão funcional do trabalho, os investimentos em conectividade, a funcionalidade de Hong Kong dentro da estrutura econômica e as constantes melhorias na qualidade da produção no longo prazo.

Deve-se notar que a armadilha de renda média não é um fenômeno puramente econômico, pois também se refere aos transtornos sociais causados pelo desenvolvimento e a mudança estrutural da economia. Neste sentido, o conceito de “armadilha de renda média” também se refere aos impactos deste processo nos atores políticos e nas expectativas e preocupações da população. Particularmente os grupos de classe média que obtiveram recompensas através de novas oportunidades de trabalho, estabilidade econômica, um melhor padrão de vida e educação, tendem a experimentar um progressivo desconforto em relação ​​ao descompasso das suas expectativas com as reais possibilidades futuras. Desde esta perspectiva, na China de hoje, os assuntos aos quais a população é particularmente sensível são educação, cobertura médica, moradia, aposentadoria, poluição e impostos.

Em declarações publicadas no South China Morning Post no final de 2017, o ex-ministro das Finanças chinês Lou Jiwei, que em 2007 tinha argumentado que que a China tinha 50% de chances de cair na armadilha da renda média, disse que ele já não teme este perigo sobre o país enfrentar algum tipo de estagnação econômica, já que as reformas introduzidas nos últimos anos estão destinadas a promover o crescimento.

No entanto, Hu Xingdou, economista do Instituto de Tecnologia de Pequim, afirmou recentemente que a China ainda deve abordar problemas estruturais arraigados, como a questão dos trabalhadores migrantes, a pobreza rural, o ingresso de empresas privadas estrangeiras para que compitam com as empresas estatais, entre outros, no intuito de evitar cair na armadilha da renda média e avançar no caminho do crescimento com desenvolvimento.

Apesar das grandes diferenças da China em relação a América Latina, desde a cultura até processo histórico de desenvolvimento (elementos que dificultam traçar paralelos conceituais), a nossa experiência histórica em relação aos problemas e conflitos que próprio processo de desenvolvimento gera pode ser enriquecedora no debate atual sobre as direções e rumos do sistema chinês.

* Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Estado, Cidadania e Assuntos Políticos (CEAP), Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires.


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