China pede paz, mas quem ouve?

China e EUA têm reunião virtual foto Xinhua
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Na quinta-feira, 24 de março, a invasão da Ucrânia pela Rússia completará um mês, num episódio de violência e agitação que transtorna a vida da população local e deixa o mundo em suspense sobre a duração e extensão da guerra, seus impactos humanitários, geopolíticos e econômicos. Vizinha da Rússia e segunda nação mais importante do mundo, a China busca uma posição comedida para o conflito sobre o qual já disse: quer seu fim. Em outras palavras, pede paz. Tal desejo foi expressado em inúmeras ocasiões, incluindo a videoconferência entre os presidentes chinês, Xi Jinping, e dos Estados Unidos, Joe Biden.

Na última sexta-feira, dia 18, no encontro virtual de uma hora e 52 minutos, Xi disse ao colega norte-americano que “países não devem chegar ao ponto de se encontrarem no campo de batalha. Conflito e confrontação não são do interesse de ninguém. Paz e segurança são o que a comunidade internacional mais deve valorizar”.

Ainda assim, para uma parcela de analistas e jornalistas ocidentais a invasão russa ao país do Leste Europeu garante à China apenas três desfechos e ou desejos: o alinhamento – e apoio – à Rússia, uma demonstração sombria sobre o que aconteceria se esta invadisse Taiwan (o que não está nem de perto nos planos chineses) e o risco de sanções por parte do Ocidente. Pouco importa se toda a diplomacia, executivo e demais instituições chinesas digam o contrário. Os chineses falam, mas poucos querem ouvir. A cereja do bolo é ainda tentar especular sobre o que a China ganha com a guerra. De novo, vale prestar atenção ao que Xi Jinping disse a Biden semana passada:

“A prioridade premente é manter o diálogo e a negociação, evitar baixas civis, prevenir uma crise humanitária e cessar as hostilidades o mais rápido possível. Uma solução duradoura seria que os principais países respeitassem uns aos outros, rejeitassem a mentalidade da Guerra Fria, se abstivessem do confronto em bloco e construíssem passo a passo uma arquitetura de segurança equilibrada, eficaz e sustentável para a região e para o mundo. A China tem feito o seu melhor pela paz e continuará a desempenhar um papel construtivo”.

A recusa em aceitar um papel construtivo e de saída pacífica por parte da China mina o debate e provoca situações como a da entrevista feita por Margaret Brennan, do programa norte-americano Face the Nation, da CBS, quando o embaixador da China nos EUA, Qin Gang, foi interrompido 23 vezes. Ele falava, mas ela não queria escutar, e mesmo que ele refutasse a possibilidade de resultados práticos ao se condenar as ações de uma outra nação, Brennan seguiu confrontando-o. O que o embaixador dizia parecia pouco importar. A paz anda realmente em baixa – e o exercício da escuta e do debate também. Aqui, link para o vídeo:. 

Qin Gang admite que a China é moderadora em potencial, o que é importante dada a extensão de suas relações com Rússia, Ucrânia, União Europeia e os EUA, como ressalta. Ele fala sabendo que há ressonância em Beijing. Na sexta-feira, ainda na videoconferência com Biden Xi lembrou de um ditado chinês: ‘Aquele que amarrou o sino ao tigre deve tirá-lo.’. Muitos interpretaram como um recado de que os EUA precisam buscar resolver o conflito eles próprios (numa alusão ao ponto de Beijing de que os norte-americanos esticaram a corda ao promoverem o ingresso da Ucrânia na OTAN). Mas Xi não se eximiu de ajudar rumo à conciliação: ‘É imperativo que as partes envolvidas demonstrem vontade política e encontrem uma solução adequada para as necessidades imediatas e de longo prazo. Outras partes podem e devem criar condições para tal’.

Esta postura em busca de paz foi destacada pelo ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru em painel mediado pelo analista de internacional da CNN Lourival Sant’Anna na última semana. O programa conta também com a participação do presidente de relações públicas no Ipsos dos Estados Unidos, Clifford Young, e da jornalista e diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China, Cláudia Trevisan. A fala de Caramuru sobre o papel da China e a paz está logo em sua primeira intervenção.

Fato que o programa é todo interessante e informativo, e, devo dizer, muito mais pelas intervenções de Caramuru e de Cláudia Trevisan no que tange o papel da China e suas implicações ante a guerra. Ambos viveram por anos no país asiático e testemunharam outros momentos desafiadores por lá, caso da grande crise financeira de 2008. Claro, nada comparável ao momento atual – que pode ser um desdobramento do primeiro e certamente outro ponto de inflexão global. 

Trevisan trouxe pontos importantes, e para ficar só na economia, lembrou que a balança comercial de China e EUA chegaram a US$ 657 bilhões em 2021, de China e União Europeia a US$ 828,1 bilhões, ao passo que de China e Rússia ficou em US$ 141 bilhões. Numericamente não faria sentido um alinhamento chinês aos russos. E há outras ramificações para se pensar só em comércio e investimento – a China é grande importadora de chips, por exemplo, em valores que ultrapasssam suas compras internacionais de petróleo. Todo este panorama e contextualização está no vídeo acima e é essencial para que se ajustem as lentes quando se observa o palco global hoje: 

A Band dedicou o seu programa dominical Canal Livre ao tema da guerra, e convidou o diplomata Rubens Ricupero. Vale a pena assistir às suas colaborações. Como ele diz, a guerra subverte até questões lógicas e econômicas e, em sua fala, volta a falar em tempos de paz – e o quão mais fácil é lidar com desafios nestas condições.

Ainda que agora haja só turbulência, vale mais uma vez recorrer à fala de Xi para Biden na última sexta: ‘Quanto mais complexa a situação, maior a necessidade de se manter a cabeça fria e racional’. Vale lembrar que tudo o que a China não quer em 2022 é turbulência ante a transição de poder que se anuncia no país. E a guerra ao lado não é a melhor companhia. E para ressaltar, Xi já conversou com outros líderes desde o início do conflito, assim como outros ministros, caso de Wang Yi, das Relações Exteriores. Abaixo a íntegra da nota chinesa sobre o encontro virtual dos dois presidentes.

ÍNTEGRA DO COMUNICADO ENVIADO PELA CHINA SOBRE ENCONTRO COM O PRESIDENTE DOS EUA

“Presidente Xi Jinping faz videoconferência com o presidente dos EUA Joe Biden”

Na noite de 18 de março, o presidente Xi Jinping realizou uma videoconferência com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a pedido do último. Os dois presidentes tiveram uma cândida e profunda troca de pontos de vista sobre as relações entre China e EUA, a situação na Ucrânia e outros temas de interesse mútuo.

O presidente Biden disse que há 50 anos os EUA e a China fizeram uma importante escolha ao divulgar o Comunicado de Shanghai. Cinquenta anos depois, a relação EUA-China mais uma vez se encontra em um período crítico. O modo como esta relação se desenvolverá moldará o mundo no Século 21. Biden reiterou que os EUA não buscam uma nova Guerra Fria com a China, não querem modificar o sistema chinês, a revitalização de suas alianças não visam a China, os EUA não apoiam a ‘independência de Taiwan’ e não há qualquer interesse em um conflito com a China.

Os EUA estão prontos para terem um diálogo cândido e uma cooperação ainda mais próxima com a China, comprometidos com a Política de Uma Só China e efetivamente lidando com a competição e com os desentendimentos para assegurar o incremento constante da relação. O presidente Biden expressou boa vontade de manter contato direto com o presidente Xi para conformar a direção da relação entre EUA e China.

O presidente Xi lembrou dos principais acontecimentos no cenário internacional desde o último encontro virtual dos dois, em novembro. A tendência predominante de paz e de desenvolvimento enfrenta sérios desafios. O mundo não está nem tranquilo, nem estável. Como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e as duas principais economias do mundo, China e EUA devem não apenas guiar sua relação rumo aos trilhos corretos, mas também  arcar com sua parcela de responsabilidades internacionais e trabalhar pela paz e tranquilidade mundiais.

O presidente Xi enfatizou que ele e o presidente Biden compartilham a visão de que a China e os EUA precisam respeitar um ao outro, coexistir em paz e evitar confrontos, e que os dois lados devem aumentar a comunicação e o diálogo em todos os níveis e em todos os campos. O presidente Biden acaba de reiterar que os EUA não pretendem ter uma nova Guerra Fria com a China, nem mudar o sistema chinês ou revitalizar alianças contra a China, e que os EUA não apoiam a ‘independência de Taiwan’ ou pretendem buscar um conflito com a China. ‘Levo essas observações muito a sério’, disse o presidente Xi.

O presidente Xi destacou que a relação China-EUA, em vez de mudar a situação criada pelo governo anterior dos EUA, encontrou um número crescente de desafios. Vale a pena ressaltar especialmente que algumas pessoas nos EUA enviaram um sinal errado às forças da ‘independência de Taiwan’. Isso é muito perigoso. O manejo incorreto da questão de Taiwan terá um impacto perturbador nos laços bilaterais. A China espera que os EUA dêem a devida atenção a esta questão. situação atual no relacionamento China-EUA é resultado direto provocado por algumas pessoas do lado dos EUA que não seguiram o importante entendimento comum alcançado pelos dois presidentes e que não agiram de acordo com as declarações positivas do presidente Biden. Os EUA entenderam e calcularam mal a intenção estratégica da China.

O presidente Xi destacou que houve e continuará a haver diferenças entre a China e os EUA. O que importa é manter essas diferenças sob controle. Um relacionamento em constante crescimento é do interesse de ambos os lados.

As duas partes trocaram opiniões sobre a situação na Ucrânia. O presidente Biden expôs a posição dos EUA e disse estar pronto para comunicações com a China a fim de evitar que a situação se agrave. O presidente Xi reiterou que a China não quer ver a situação na Ucrânia piorar. A China defende a paz e se opõe à guerra, o que está embutido na sua história e cultura. A China atua com base em conclusões independentes avaliando cada assunto. 

A China apoia a defesa do direito internacional e das normas universalmente reconhecidas que regem as relações internacionais. A China adere à Carta da ONU e promove a visão de segurança comum, abrangente, cooperativa e sustentável. Esses são os principais princípios que sustentam a abordagem da China à crise na Ucrânia. A China apresentou uma iniciativa de seis pontos sobre a situação humanitária na Ucrânia e está pronta para fornecer mais assistência humanitária àquela nação e a outros países afetados. Todos os lados precisam apoiar conjuntamente a Rússia e a Ucrânia no diálogo e na negociação que produzam resultados e levem à paz. Os EUA e a OTAN também devem dialogar com a Rússia para abordar o cerne da crise na Ucrânia e aliviar as preocupações de segurança tanto da Rússia quanto da Ucrânia.

O presidente Xi enfatizou que, com a necessidade de combater a COVID-19, por um lado, e proteger a economia e a subsistência das pessoas, por outro, as coisas estão muito difíceis para países ao redor do mundo. Como líderes dos principais países, precisamos pensar em como lidar adequadamente com os problemas globais e, mais importante, ter em mente a estabilidade global e o trabalho e a vida de bilhões de pessoas. Sanções abrangentes e indiscriminadas só fariam o povo sofrer. Se aumentarem ainda mais, podem desencadear sérias crises na economia global e no comércio, finanças, energia, alimentos e cadeias industriais e de suprimentos, paralisando a economia mundial já definhando e causando perdas irrevogáveis. Quanto mais complexa a situação, maior a necessidade de manter a cabeça fria e racional. Quaisquer que sejam as circunstâncias, há sempre a necessidade de coragem política para criar espaço para a paz e deixar espaço para a solução política. 

Como dizem dois ditados chineses: “É preciso duas mãos para bater palmas”. “Aquele que amarrou o sino ao tigre deve tirá-lo.” É imperativo que as partes envolvidas demonstrem vontade política e encontrem uma solução adequada para as necessidades imediatas e de longo prazo. Outras partes podem e devem criar condições para tal. A prioridade premente é manter o diálogo e a negociação, evitar baixas civis, prevenir uma crise humanitária e cessar as hostilidades o mais rápido possível. Uma solução duradoura seria que os principais países respeitassem uns aos outros, rejeitassem a mentalidade da Guerra Fria, se abstivessem do confronto em bloco e construíssem passo a passo uma arquitetura de segurança equilibrada, eficaz e sustentável para a região e para o mundo. A China tem feito o seu melhor pela paz e continuará a desempenhar um papel construtivo.

Os dois presidentes concordaram que a videochamada foi construtiva. Eles orientaram suas equipes a acompanhar prontamente e tomar ações concretas para colocar as relações China-EUA de volta ao caminho do desenvolvimento constante e fazer os respectivos esforços para a solução adequada da crise na Ucrânia.

Ding Xuexiang, Liu He e Wang Yi estavam presentes na teleconferência.”


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